
Dia 12 de Abril de 2011. Uma
mulher de 58 anos está em casa, sentada à mesa. Pega num cantil com café,
levanta-o e bebe com uma palhinha. Torna a pôr o cantil em cima da mesa. Sorri
com evidente alegria perante o que acabou de fazer e toda a gente à sua volta
aplaude. A celebração justifica-se plenamente: é que desde 1996, quando foi
vítima de um AVC que a deixou tetraplégica, ela nunca tinha tomado um café sem
ajuda.
O que fez a S3 (nome fictício) naquele dia de
tão extraordinário? Imaginou que estava a mexer o seu próprio braço e que, com a
sua própria mão, segurava no cantil e o levava à boca. E, ao imaginar isso, fez
com que um braço robotizado — ao qual ela estava literalmente ligada através de
um chip microelectrónico implantado no seu cérebro — executasse os gestos que
ela comandava. Essa sua intenção motora (ou, dito de outra maneira, os impulsos
eléctricos disparados intencionalmente pelos seus neurónios) fora transmitida
pelo implante a um programa de computador capaz de os transformar em movimentos
adequados do braço artificial. Esta e outras façanhas de S3 — e as de um segundo
doente de 66 anos, tetraplégico desde 2006 e designado T2, são descritas na
edição desta quinta-feira da revista Nature.
“Ainda temos muito trabalho pela frente, mas os
avanços animadores destas investigações são demonstrados não só pelo sucesso [da
experiência], mas ainda mais pelo sorriso de S3 quando conseguiu tomar um café
sozinha pela primeira vez em quase 15 anos”, diz Leigh Hochberg, da Universidade
Brown e um dos principais autores do trabalho.
A equipa de Hochberg e de John Donoghue, também
da Universidade Brown, e que integra ainda cientistas de Harvard, dos
departamentos norte-americanos dos Assuntos dos Veteranos e da Defesa, da
agência aeroespacial alemã DLR e da empresa norte-americana DEKA, está
actualmente a realizar um ensaio-piloto em seres humanos do seu dispositivo
neuronal implantável, baptizado BrainGate. Trata-se de um quadradinho de
silício, do tamanho de um pequeno comprimido, com 96 finíssimos eléctrodos à
superfície que são capazes de registar a actividade de pequenos grupos de
neurónios.
Tarefas muito complexas
S3 e T2 são os dois primeiros participantes
nesta fase do ensaio, que continua em curso e a recrutar voluntários. Ambos
sofreram um AVC do tronco cerebral, ficando incapazes de mexer as extremidades
ou de falar. S3 entrou no projecto nas suas fases mais preliminares e é
portadora de um implante há mais de cinco anos, com os eléctrodos alojados a uns
milímetros de profundidade no córtex motor, a região do cérebro que controla os
gestos voluntários.
Dois braços artificiais foram testados nestas
experiências. Um deles, o da DEKA, foi concebido para servir de prótese a
veteranos de guerra amputados na sequência de ferimentos. Ou outro, da DLR, não
é uma prótese, mas antes um “dispositivo de assistência”, e é mais pesado.
Ambos os doentes treinaram vários dias a
apanhar bolas de espuma com ambos os braços artificiais — e a seguir, S3 tentou,
com sucesso, a experiência do café. Estas duas tarefas são “as mais complexas
jamais realizadas” com uma interface cérebro-computador, explica um comunicado
dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, um dos financiadores do projecto. Até
aqui, doentes tetraplégicos com implantes cerebrais já tinham conseguido
deslocar um cursor num ecrã de computador e, em 2008, macacos não paralisados
também tinham conseguido mexer um braço artificial com o “poder da mente”. Mas
nunca um ser humano doente tinha executado deslocações em três dimensões tão
próximas de gestos da vida quotidiana. Como resume num comentário na Nature
Andrew Jackson, da Universidade de Newcastle, Reino Unido, os participantes
conseguiram tocar nas bolas de espuma em 45 a 96 % das tentativas e apanhá-las
em dois terços das vezes em que lhes conseguiram tocar. Um dos aspectos mais
“notáveis”, salienta, é o BrainGate de S3 ter funcionado correctamente cinco
anos após ter sido implantado.
Quanto à experiência de S3 com o café, foi bem
sucedida quatro vezes num total de seis tentativas com o braço mais pesado e
mais difícil de manipular com precisão. E o que é particularmente promissor para
o futuro desta abordagem neurocibernética é o facto de o córtex motor de S3 ter
conseguido funcionar após ter estado “desligado” durante 15 anos, como salienta
Hochberg.O derradeiro objectivo do BrainGate, ainda muito longe da aplicação
prática (foi preciso calibrar os sistemas durante meia hora antes de cada
treino), é conseguir um dia ligar o cérebro às extremidades dos doentes via uma
ligação sem fios, de forma a traduzir a sua actividade cerebral em estímulos
eléctricos que façam mexer os músculos paralisados.
In: Público online
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